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armadilha

armadilha

01
Jul21

ser-sombra

killua

de janeiro, com febre e o corpo a arder



não nos podemos agarrar a um sofrimento. entre ele e este vírus maldito, não sei qual dos dois mais me tentou matar. tento remar contra a maré, agradecer a serenidade dos mares, fazer tudo para ver o barco abrandar mas eu sou criança irrequieta num corpo grande demais para mim. o confinamento mexe para caralho com a minha cabeça. longe da velocidade que me faz, concluo que ainda não assimilei nada que aconteceu desde o meu nascimento. encontro-me em viagens futuras a fitar-me nos olhos e repito: vou navegar continuamente a dizer apenas ‘’ainda não assimilei nada’’. mas agradeço a dádiva de poder (quase) começar de novo

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é quase inevitável reflectir sobre todos os milagres e mitos que me vieram ocupar desde o retorno a coimbra. há por cá tantas representações do passado e futuro, de grandes portas fechadas que serviram apenas de impulso para caminhar até outras maiores ainda se abrirem. estar na minha cidade sou só eu e o meu sorriso. neste confinamento, as relações com a realidade começam a sofrer distúrbios, por muito que a minha curiosidade irrequieta me leve a dar as minhas voltas. há brechas de luz que são brechas de vida, e nelas se intensifica a vontade de saber viver de alguma forma equilibrada, sabendo que ainda assim, para mim são quase ridículas as tentativas. o tipo de prazeres aos quais me dedico têm consequências gravíssimas, se param na balança do que é ser socialmente e individualmente responsável durante uma pandemia mundial. quando estoirou a crise pandémica do covid há quase um ano, andava por aventuras de capital por Madrid, e é como se tivessem por mim atravessado algumas centenas de anos e fosse uma já obrigatoriedade deixar hoje escrito aquilo que me falhará em reminiscências futuras. no outro dia o Bernardo perguntou-me porque é que era obcecada pelo passado. aquilo atravessou-me durante semanas. já sei que lido de forma desconfiada com a nostalgia, que me tenta invocar continuamente a sítios onde já não caibo, a ver se em mim instaura a tortura.

a racionalidade só é um terror para os fracos de espírito e eu tenho ainda todas as lutas por vir. o ano que nos atropelou apela urgentemente para que se repensem todos os tipos de organizações, enquanto simultaneamente obriga a abrandar e aprender a estar presente. em oposição, tenta sugar-nos para uma espiral de desconexão através da virtualização do acesso a relações humanas. o autocuidado é fundamental, mas cada vez acredito mais que é impossível fazê-lo fora da colectividade. ontem um amor de nove aninhos dizia ao jantar que escreveu num texto para a escola que ‘’a amizade ajuda a evitar acidentes’’. e sorrio, mas ele interrompe o gesto ao dizer que não acreditava tanto nessa frase, apenas o ajudava a ter boas notas escrever dessas coisas cliché. eu acredito por ti victor, e este ano homicida é prova dos vários níveis em que isso é real. as redes solidárias e chamadas e vídeos e encontros e reencontros salvaram-me a vida. os espaços a revisitar nesta volta foram todos. esta cidade é um circo, e eu gosto. as caras de sempre e as novas, os abraços mil, isso é tudo valiosíssimo. o poço que tinha escavado ao decidir ir era já irrelevante e não dá para lembrar os motivos do veneno. só o final de dezembro e um janeiro cheio de esperança no olhar. porque,

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em memórias que são quase sonho, houve quem me arrastasse fora do bafo estival de granada - esse tesouro andaluz que teve toda a força para me recordar que sim, a sensibilidade é revolucionária. saímos desse milagre para entrar noutro e, numa fronteira passada à meia noite, estamos em terras algarvias. e há o vinho verde, o português e os sotaques ao monte, gentes de faro aglomeradas para as quais estar ali é rotina. concretizado o retorno, admito a libertação e salvação do sentimento de pertença, de me fazer ouvir e ouvir facilmente. deitei na praia e rendi-me sonolenta a essa paz aveludada. horas mais tardes, rompeu-se a nocturnidade e ao abrir os olhos, tenho em volta e por baixo a areia fria, contrastada com o sol gigantesco, pronto para me engolir. nesse manto, relembro olhar em volta e concluir apenas que: é tão bom só estar-se vivo, e ter aqui este grande mar para me banhar.

entendi que ia viver em granada numa tarde qualquer, na sua totalidade dedicada a tomar decisões aéreas, que alterariam o rumo total da minha vida. nunca me acostumei à agonia da lentidão que acompanha as projecções e projeções, expectativas e possíveis desilusões de mudar de sítio. com rapidez disse que sim… e foi ter a certeza que sim, era mesmo para ir. ter de montar casa no futuro e o acesso a certas oportunidades é terreno volátil, já que nunca pensei que fosse viver tanto. estou incrédula por ter a independência e determinação para decidir assim. ao fazê-lo, tinha finalmente começado o luto por uma série de acontecimentos que me tinham como ser-alvo de uma pilha fedorenta de jogos, traições, falhas. de coração destroçado, sabia apenas gritar que tudo o reconhecível até agora era mentira e não me mudar seria aceitar um dia-a-dia em que me põem continuamente sal em feridas. mergulhei nesse mar incerto, de forma desesperante e radical, sem grande confiança ou rumo. eu sentia que a podridão toda de dentro tinha de estar a vazar fora da minha pele. pensava que toda a gente me olhava e sabia o tamanho deste terror que me consumia. as outras de mim sussurravam para dentro, confusas, ‘’já soubeste recriar o mundo outras vezes, fica aqui e resolve-te aqui’’. inquestionável a inutilidade desse conselho. fiz a mala e segui sem muito pensar. não se foge de um estado depressivo evitando a necessidade de mudança, e na minha cidade, sentia-me incorpórea, fantasmagórica ... na vida dos demais e na própria.

era valente a paranoia que me envolvia e, ainda assim, sorte ao azar. recusei com todas as forças perder-me nesse vitimismo e dos deuses recebi manjares de oferendas. abraços e beijos e companhias inesperadas e chamadas a recordar vidas passadas e livros que eu tinha de ler e comentários que garantem que os últimos anos aconteceram mesmo. tantos que queria imensamente me falharam no ano anterior que eu duvidava do passado incisivamente, se era invenção ou vida por mim vivida ou o que era. sem passado torno-me gente sem terra, e doía muito. muitas vezes, faltou-me o brio para saber reconhecer as dádivas. às vezes é difícil escolher o melhor para ti, mesmo que esteja diante dos teus olhos. o depressão e o desinteresse por tudo violentam a vida. havia amarras e bloqueios. o coração e os olhos ardiam. hoje em dia não entendo ainda como é que se vive tanto tempo dentro de uma casa que arde.

tinha a minha anterior casa ardido, o que dela sobrava, pelo menos. todas as relações sociais eram marco de ameaça, assustadoras e trabalhosas, e a repetição dos nomes que doíam ecoava por todas as partes. apercebi-me que os que foram desleais são tantas vezes nomeados e essa maldade ocupa tanto e tantos espaços, do social ao físico e ao simbólico. a ocupação hipócrita.

há um fenómeno recorrente dentro das comunidades às quais pertenço, assustadora e material, e à essência de qualquer comunidade de ‘’esquerda’’ maioritariamente universitária. usemos o exemplo de homens jovens, universitários, em coimbra a discutir feminismo. a diferença encontra-se visível primordialmente na distinção entre a teorização realizada nas rodinhas de conversa sentados no espaço social colectivo wtv e nos que lhes sai da boca depois do terceiro copo de vinho. uma vida de práticas não machistas demanda mais que repetir superficialmente as frases e filosofias que creem funcionar para passarem como aliado. porém, sou espectadora de uma contínua expulsão ou afastamento de pessoas, magoadas, violentadas, marginalizadas, dentro das mesmas comunidades que alimentam as teorizações académicas sobre o que no nosso entorno se manifesta. há, acima de tudo, a inércia. sinto quase que para algumas pessoas, ao discutir problemas sociais nas aulas e no café com os amigos, falam de uma massa hipotética de gente. ao debater propostas para melhorar as nossas vidas e fugir ao inferno patriarcal, as narrativas criadas parecem hipotéticas, como se fosse para salvar personagens, e não pessoas reais que vivem nas nossas ruas e nas nossas cidades. perante essa postura, negamos que nas mesmas mesas de café onde nos sentamos todos existem também agressores e violentadores. somos todos e todas coniventes através do nosso silêncio. não perder o capital social suga mais respeito que ser aberta e vocal sobre as agressões dentro da nossa comunidade. há em mim urgência em desmascarar isto tudo (e por consequência perder bastante). isso envolve entender que a política não é apenas levantar faixas e frequentar manifs para se dizer que se foi e escrever artigos na faculdade ao fim do dia, e sim buscar activamente criar espaços onde se podem expor violências. já sem medo. é entender que muitos dos nossos colegas têm atitudes nojentas. admiti-lo. dependendo da gravidade das situações, e caso se justifique, acompanhar devidamente estas almas que violentam. isto, para que nenhuma mana fique de fora. porém, é notório que pouca ou nenhuma comunicação existe em situações onde existem dois lados, ou dois espectros de violência. no fim dessa estrada, a apatia e falta de preparação destas mesmas comunidades em lidar com violência de género, resulta em exílios forçados. quando há visões em desacordo e filmaria, a pessoa que se ausenta não se vê representada, principalmente se algum intruso tiver garantida o ponto número um: convencer todos em volta de que a pessoa a quem te referes é maluca, paranóica, controladora, autoritária, etc

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e já que é para ser assim recordada, que se foda, nunca calarei nenhuma história, é de mim que é preferível que saiam

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perante o fim de 2020, havia quase tudo para celebrar. a família de sempre sentou-se em torno da mesa de sempre. nada em falta. baptizei o novo ano com a mente em chamadas, uma incrível madrugada e alguns milhares de sabores, tesões sinceras e a ressaca a comer-me, obrigatória e parasitária. eu comecei o ano com o peito cheio, assim completamente louca de vontade de andar para a frente com a minha vida. este enamoramento breve e passageiro foi interrompido pela agonizante chamada às nove da manhã, dando-se o despejo da república sorea. é impossível escrever sobre este tema de forma isolada. há que saber penetrar na complexidade das mil histórias que nos fizeram chegar aquele massacre, deixar explícito as inúmeras falhas e momentos de negligência por parte das instituições (e até de dentro da comunidade) e relatar que: apesar de felizmente os habitantes da casa terem conseguido voltar à mesma, a violência do que ocorreu naquela manhã não é retirável. a luta continua. escrevi muito e muito mas vou apagar tudo porque me repito.

o repouso fez-se cessar pelos golpes gigantes, que tão brutalmente provavam que existia bastante em marcha para além do ‘’estou só a fazer o meu trabalho’’. vieram armados com o insulto na ponta da língua. munidos do racismo, da xenofobia e da intransigência. tinham consultado previamente com a represente legal da proprietária do imóvel que, ao contrário destes primeiros, nunca fez grandes esforços para esconder a sua xenofobia. esta tinha afirmado que habitavam a casa imigrantes ‘’ilegais’’, daí a justificação da invasão forçosa, sem permitir aos habitantes que aguardassem a chegada do seu advogado. no interior, o espaço foi dominado pela demanda de que todos os presentes se identificassem, inclusive aqueles que estavam de passagem e não dormiam quotidianamente lá. quem se recusou pela ilógica da obrigação, foi acusado de esconder algo, nomeadamente, a sua ilegalidade no país. ao chegar, assisti ao deplorável espetáculo fora montado, olhei na cara dos demais e tinham consigo desespero marcado. era oficial e tinham agora uma hora para pôr a vida em malas e deixar-se reencaminhar para outro sítio onde haja quem lhes abra a porta. as vidas destas pessoas não cabem nos sacos mil à porta, nos gatinhos assustados, nas malas à pressa, na angústia de não saber exactamente o que é que se deveria salvar. não dá para empacotar uma casa, nunca realmente. a câmara de coimbra marcou presença no local, com o papelinho a afirmar que iria tomar posse administrativa mas não se tinha organizado a tempo para evitar o dilúvio. devia estar de ressaca de ano novo como eu.

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infelizmente, durante esse apagão, ignoram-se responsabilidades que resultam nestas catástrofes. continuam a tentar denunciar as nossas existências. e estes senhores, os presentes ou os que nem a isso se dignaram, o que é que escondem? como é que olhas alguém nos olhos e lhe dizes, em plena pandemia, no frio de janeiro, que não há espaço para ela na casa onde vive? como é que estes mesmos corpos caminham pela nossa casa e tocam as nossas paredes? dá-me nojo que caminhem na casa e toquem as nossas paredes. isto não lhes pertence, mas não dá para explicar isso a quem nunca soube o que é pertencer a lado algum. riram-se, contaram-me que estavam a cumprir a lei. olha a coimbra de barriga cheia mas pobre no conteúdo. ainda tive de lidar ainda com um agente a me chamar ignorante, ao meter conversa comigo para me deixar a par da justiça ali a ser cometida, visto que na casa não vivia nenhum açoreano. grizo-me e mando uma piadinha sobre paquistaneses na prákystão e o mesmo gira-se, inconformado, para dizer que eu não leio livros, claramente não sei a história das repúblicas muito menos da minha e que essa piadinha era resultado de muita falta de estudo. eu grizei-me outra vez e invadiu-me uma vergonha alheia gigantesca por ter este homem na minha frente, a tentar explicar-me como vivo, como vivemos, o que sou e o que as repúblicas representam. eu já sei. nunca tinha acreditado em ser a voz mais gritante para ter de ser escutada. sempre me calei perante as interrupções e nos sítios onde senti que não era bem-vindo que eu actue como eu mesma. daí, desde pequena acreditei também que ia saber lutar com as palavras. até entender que há tantos e tantos monstros sem fala e sem escuta, focados apenas em reproduzir continuamente a violència. são máquinas, demónios, burocráticos, imperialistas, perdidos da vida, soberanos absurdos. chatos. já sabemos todos que a prá é um jogo de palavras, ganhaste senhor.

em reuniões várias com instituições principais de coimbra, contam-me sobre o pouco impacto das repúblicas no município hoje em dia. tentam apelar à nossa desorganização para justificar a deles, e outro par de blasfémias que fomos tendo de ouvir. vocês querem é proteger os ralos da cidade cheios de grego das queimas e o turismo nojento do verão, sem qualquer profundidade ou interesse em como isso afecta os locais. ou em investir noutras merdas cuja execução facilitam, já que facilita também o fluir desse dinheiro sujo do qual se orgulham. depois o tonto é aquele que não quer ser assistir esse espetáculo, e tenta mostrar, com mais ou menos apoios, que coimbra e os seus habitantes seriam imensamente mais felizes com outro tipo de investimento na cultura da cidade. a hegemonia pseudo-cultural que as instituições principais de coimbra protegem fazem de todos nós que buscam alternativas o lixo da cidade. los meninos olvidados.

apesar de ter crescido cá, já não vivia em coimbra há dois anos. nessa manhã não sabia por onde me virar ou a quem contactar para se juntar. estou eu longínqua de saber como se procede a ter fixa essa organização de forma funcional, mas está claríssimo que coimbra não tem um grupo de apoio/segurança pronto a reagir, lidar e enfrentar questões como a que descrevi anteriormente. sermos poucos é uma frustração que nunca cala. a cidade sofre e nós sofremos. a pandemia veio desmobilizar ainda mais, e não sei como seremos depois disto. não me quero conectar nas reuniões do zoom e que ouça o computador o que tenho a dizer, para distribuir e vender. nem sei o que dizer sobre as repúblicas pós-pandemia, mas a minha intuição conta que resistiremos sempre. a todos os custos.

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é-me difícil enumerar os motivos e buscar-lhes soluções. ainda assim, não faço associações directas aos responsáveis pela apatia colectiva. se bem que os há. talvez todas as forças fascistas. que te começam a perverter-te já desde o útero. desconstruir-se e descolonizar-se não é um discurso disponível já à partida. subir a um pedestal e acreditar que essa visão está igualmente acessível a todos é errado e sem noção. há que lutar para continuamente adaptar, entender, aproximar-se e saber escutar. porém, sei também que não existe igual oportunidade para fazer tudo que descrevi anteriormente. estou continuamente incomodada com o facto de dizer barbaridades classistas. vou para já que tenho dificuldade a escrever sobre isto.

cada vez tenho mais certeza que nunca teremos acesso real à história e ao passado, o que não impede de continuar a tentar. a autocrítica é essencial. nunca fecharemos os olhos nem esqueceremos a luta.....manas por favor esmaguem-me se me tiver a esquecer da luta.

é portanto lamentável a rapidez da penetração das ideias de extrema-direita no povo português e consequente resultado das eleições autárquicas agora em janeiro. propagam-se com a força veloz e carga viral destructiva. tenho reflectido e estou ainda obviamente sem respostas, mas questiono-me sobre se há grupos, em todas as gerações, que têm quase medo da liberdade. é ousado e provavelmente tosco o que digo, parece-me uma possibilidade difícil de tragar. ainda assim, questiono sobre se há gentes inteiras com medo de ter controlo sobre si mesmos e sobre as suas próprias vidas. longe de uma socialização submissa e longe das migalhas de autonomia que nos servem desde a pequenhez. as massas conseguiram convencer quase todos que é mais simples que tomem os outros decisões por ti, por te fazerem crer que é o inverso que se sucede.

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o palácio onde vivi, esse ilustre milagre em forma de casa, criou em nós uma garantia de que despertando por ali, os dias certamente seriam brilhantes. quando há um par de semanas encostou no nosso mar um antigo dos anos sessenta, depois de se deslumbrar em nostalgia com as suas próprias histórias da luta estudantil, pede para que cada um individualmente descreva o que faz e do que gosta. respondo que quero fazer filmes e é essa a minha única certeza. reage contando-me sobre a sua vivencia ao lado do césar monteiro. enumerou várias aventuras delirantes, todos protagonizados pelo césar e e pela forma penetrante como o cinema ocupava a sua vida. este aparte na conversa terminou com a seguinte frase do alberto, referindo-se à pra: ‘’desde que conheci o cinema, é como se tivesse vindo aqui’’. obrigada alberto,...

eu perdi a conta aos dias que me sentei comovida a tentar chegar a conclusões sobre tudo o que permiti mudar de mim aqui dentro. estão cá dentro também todos os que amei, em maior ou menor medida. está ainda perto de mim ter a bruna a acordar de ressaca e a raísa em invenções culinárias e o tod a invadir-me o quarto com perguntas para os quais nenhum tinha resposta e a catarina a mandar sms para eu ouvir música baixinho e o mário de cigarro na mão a dizer coisas inteligentes na sala. estão todos tão estupidamente dentro de mim, ainda sentados à volta da mesa, ainda expectantes por que o outro chegue a casa. sei e estou segura que houve tantos mais que me ocuparam igualmente, e que deixei muitos estranhos preencherem pedaços de mim. é acolhedor pousar a cabeça de quem gostamos, ir dormir com a certeza do poder gigantesco de ser rodeada por pessoas que amas.

nesse sentido, nunca existiu em mim maior massacre do que consciencializar-me de que muitas vezes me aconcheguei no inimigo e sofri muito e perdi a cabeça e tinha a certeza que não ia acreditar em amor nunca mais. a vida soube divertir-me tanto que mais cedo do que esperava deu para dar a reviravolta ao desespero que esperava ocupar-me sempre. hoje, admitir a cura é entender que todos os que alguma vez me erraram já não são feridas. todos que souberam desrespeitar o oásis conjuntamente construído continuam aqui, tal como os outros, em maior ou menor medida. ser feliz hoje é aceitar que a vida assim segue e, não sendo feridas, a sua memória exala a confiança de tempos antigos. penso neles fingindo que ainda são as mesmas pessoas de ontem, e que não desrespeitaram a extraordinária lei que nos fez termo-nos tornado espontaneamente família. prefiro viver dia-a-dia mais próxima da minha paz, e recapitular as memórias com a segurança de que foram reais enquanto vivia dentro delas. muitos poucos conseguem imaginar o quanto isto é uma conquista.

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nos momentos de maior angústia do passado ano, principalmente quando não estava à deriva, quis acima de tu voltar a aproximar-me de quem eu era em coimbra. sentia que tinha uma energia incomparável a qualquer outra coisa. recordo pensar que poderia ter sido um monte de outras coisas mais bonitas, mais espertas, mais úteis, se não tivesse tido este último ano atroz e violento. este tipo de pensamento é do mais mortífero, e acompanha-me desde o nascimento (a tentar me matar) porque culpabiliza quem se sente doente por se ter deixado afogar nessa dor profunda, como se o atrofio não fosse feroz e sem escrúpulos. alimenta-se do animal que escolheu. se tivesse escolhido apagar o passado para sobreviver, eu teria negado a poesia, eu teria negado a necessidade que tive de passar por certos caminhos, mesmo não tendo a certeza sobre ao que é que me aproximaram realmente. não há respostas para tudo, e isto era mais fácil quando chegava a casa e contava tudo à catarina. como objectivos, o principal é ‘’continuar a fazer de tudo mesa para o pensamento’’, como escreveu o herberto. pensar pensar pensar e pensar, devorá-los mas nunca me deixar ser devorada.... saber aceitar os processos lentos e saber que ritmos tenho o meu.. que já perdi tanto irrecuperável mas a firmeza é massa dura e resisto sempre. saber hoje que nenhum loop é saudável. estar satisfeita seria fechar os olhos.

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As frases escritas nas paredes tinham todas razão

Obrigada pela visão

01
Jul21

...

killua

ainda que caídos no miraculo da transigência, os inimigos fecharão as portas a qualquer simulacro obsequioso de conhecimento do Outro.

ao se tornarem delineadores de fronteiras sabotaram a indissolução da terra que havia sido Prometida aos que menos se acostumaram aos demais espíritos inconscientes

esquecem que venturosamente me materializo no meu próprio planeta. os astros não oferecem a sua mão aos mestres da auto-intitulação divina.

nenhuma casa na lua se compararia ao extâse de sair da paranóia deste circo de pensamento; a sair do círculo restringente do meu cansaço
negar a repetição malevolente do massacre consumista a que se dedica esta tesão e desejo

a balança nunca transparece franqueza quando se aproxima o julgamento das nossas raízes no espaço

assim pesa muito que se sinta o amor um recurso esgotável perante a minha humanidade
assim pesa muito que a superficialidade tenha engolido qualquer tentativa de acumpliciamento

resta o sabor da madrugada em que neguei a reconciliação com todos os meus sentidos.
chega de nutrir inveja megalomana pela calmaria que os Outros invade
submeto-me à caída iminente no abismo porém manter-me-hei espectadora do desenrolar da batalha

01
Jul21

erro

killua

Sobre Coimbra, um filme incrível, o cinema e a falta dele, a praxe, a misoginia, a imposição estudantil, a apatia, as repúblicas, o conselho das repúblicas, a gentrificação, os homens que estão em todo lado, entre outros (possível saltar o parágrafo da construção de Edgar). O texto que se segue contém spoilers e conteúdo sensível sobre violência emocional e sexual.



Chego com vinte anos de atraso, mas assisti finalmente ao filme de 2001 ‘’Rasganço’’, realizado por Raquel Freire. Apesar da legitimidade duvidosa para aí se encontrar, é possível encontra-lo de forma completa no youtube. Seria um erro tentar fazer uma análise à longa-metragem tendo apenas em consideração a imposta classificação como um mero thriller. É importante visibilizar a versatilidade de temas aportados neste retrato conimbricense, cujas dinâmicas vão além do foco mediático mistério, sequestro e violência.



Este é um filme sobre a minha casa e a minha terra. Vendo-me retratada nestas mesmas ruas, onde passo pelo outros (e passo principalmente por mim....:..)...) sou incapaz de analisar o que assisti fora das referências que eu mesma fui cultivando ao crescer aqui. Considero o que vi corajoso, principalmente tendo em consideração o panorama cultural desta ~tão~ prestigiosa terra universitária. Queria ter estado na primeira exibição deste filme, queria poder sentar ao lado dos fala barato da esplanada de Arquitectura a espremer o tema até à morte (como o próprio filme tão bem retrata). De certa forma, em tantas das imagens do filme, são os outros mas sou eu e as minhas companheiras também sentadas nessas mesmas cadeiras, a esmiuçar os mesmos temas. Apenas nos separam duas décadas.



''Coimbra, a mais complexa de todas as personagens, conta a história: Eu não sou só uma cidade. Sou uma estufa. Uma reserva natural para estudantes, onde eles vivem em plena liberdade. Sou uma espécie de doce, entre a adolescência e a idade adulta. Mas só para os que puderam estudar. Os melhores. Eles sabem que são uma elite. Uma manhã de Janeiro chegou um homem. Apaixonou-se por mim e pelas minhas mulheres. Tolo, não percebeu que EU não sou para quem quer, mas para quem pode; e que o amor não abre as minhas velhas portas.’'



Embarcamos no mar agridoce para que nos prepara essa sinopse, privilegiando Coimbra como personagem interactiva e principal da trama. Existem, para além desse destaque, outras três questões estruturantes no filme: a masculinidade tóxica e psicopatia de Edgar, os seus três relacionamentos sexo-afectivos com mulheres de diferentes contextos e idades e a força da imposição estudantil sob a cidade de Coimbra.



A CONSTRUÇÃO DE EDGAR



Edgar, homem feito de chegada a Coimbra e ignorante em relação às práticas e tradições estudantis aí vividas, encabeça a narrativa. A ingenuidade que o define aquando a sua chegada vê-se diluída por uma psicose que o consome, culpando a figura feminina e a sua incapacidade em pertencer ao imaginário universitário. Todas estas questões estão intrinsecamente relacionadas entre si, culminando na violação e mutilação de Edgar a algumas mulheres jovens estudantes da Universidade de Coimbra.



A representação de um rasganço - dando nome ao filme - ocupam a primeira e última cena do filme. A atmosfera que vai sendo criada aconchega-nos para o culimar do rasganço final, da protagonista Ana Rita, deixando em aberto o futuro de todas as personagens. O ‘’rasganço’’ consta em rasgar a capa e batina pelos colegas que fizeram parte do percurso académico do estudante que se acerca ao final do curso, e é um acto que tem uma importância significativa dentro dos rituais praxísticos de Coimbra.



‘’Coimbra é um mundo à parte. No princípio assusta. É uma espécie de estufa feita só pros estudantes e pra universidade’’

Neste filme há de tudo. Observamos, como num postal, a força de Coimbra, vista desde uma santa clara esquecida. Mostra-nos como era ainda tudo na virada do século. Há a subida das monumentais, acompanhada duma banda sonora que nos garante a iminência de um desastre. Encontramos as ruas iguais e as pessoas iguais, de pé a fumar cigarros em frente a uma fachada da Faculdade de Letras já completamente pixada de contestações várias. As pessoas estão sempre atrasadas para as merdas. Assistimos a uma amorosa serenata no Largo de S. Salvador, dirigida à varanda das Marias do Loureiro (onde eu tantas escutei, onde eu me apaixonei tantas mas tantas vezes). Sentimos o suor que escorre nas festas de cozinha das repúblicas cuja pujança só conhece quem baila forte e feio nelas. Relembramos os peregrinos de Maio, contrastados com a típica moca pós queima, o grego e as viagens sem roupa ao rio de madrugada. Acedemos a um exercício dentro do que imagino ser a caixa negra da sala do CITAC, essa sala que tanto significa pra tantos; Vemos as representações subtis e representações grosseiras do fenómeno praxístico e indignamo-nos com ambas. Há uma relação media ilegal professor-aluna. Ornatos Violeta toca e bate muito. Escutamos de fundo que «...são 5 da tarde no jardim zoológico da rádio universidade...»;



Apesar da diferença evidente entre as três mulheres com quem Edgar se relaciona, é possível assentar nalguns factores em comum entre elas. Ana Rita, Zita e Maria dos Anjos vêm nele uma idealização de todas as suas necessidades e desejos, sendo incapazes de examinar a sua falta de transparência. Alimentam a ideia de Edgar como pessoa que teve pouca sorte, porém admitem nele uma inteligência não normativa. Apesar de se conhecerem e comunicarem entre si, as três mulheres desconhecem a ligação partilhada com a personagem masculina. Vemos, a certo momento, Ana Rita e Zita sentadas juntas no cabeleireiro, a comentar a possível gravidez de Rita (sem o conhecimento que o pai seria o amante de ambas). Edgar encontra-se em constante metamorfose para conseguir representar exactamente o que cada uma necessita, com o objectivo futuro de sacar-lhes certos benefícios a seu favor. Nomeadamente: satisfação, tecto, oportunidades de trabalho e aproximação ao contexto estudantil. Dentro desse seio manipulativo, claro no seu discurso, envolve-as individualmente numa sensação de cuidado e exclusividade. Consegue manter a farsa triplamente, utilizando essa capacidade adaptativa para penetrar no imaginário idealizado de cada mulher. É ele o homem-sonho para as três com quem se relaciona e, simultaneamente, o homem-horror/mutilador para todas as outras. Através dos diálogos entre os casais, tornam-se evidentes os rasgos de chantagem por parte de Edgar, envoltas em misoginias óbvias, principalmente quando confrontado com a realidade do seu estatuto de não-estudante.



Rita é a típica estudante muito participativa nas várias facetas da vida académica, bastante participativa e popular. É a primeira pessoa que Edgar conhece ao chegar à cidade, e quem lhe dá a conhecer a tradição universitária e os mecanismos que fazem Coimbra funcionar como funciona. Enamoram-se. Numa fase inicial do filme, enquanto assistem a um ensaio na caixa negra (assumindo eu a participação do CITAC no filme), Rita aponta para o seu irmão que é um dos actores em cena, e de seguida pergunta a Edgar se ele gostaria de voltar a estudar. Ele responde ‘’Isso é importante para ti, não é?’’, ‘’Se não estudares o que é que eu digo aos meus amigos?’’ A sua personagem vê-se apreendida neste submundo dimensional entre amigos-gerais-que-não-são-universitários/universitários - dualidade que se torna proponente ao largo do filme. Na sua metade, há um longo shot em que baila Rita com outra pessoa, traindo-o, pois Edgar tinha sido barrado de entrar na festa da Associação Académica por não ser estudante. ’’Claro, é porque sou estúpido. Nunca andei na universidade’’. Fixam-se nesse momento as intenções perversas que chega a concretar; Nasce aí a semente na sua cabeça, de que teria de deixar a sua marca - de forma literal - neste mundo impenetrável que o rejeitou. Ainda na metade, engravida Rita, que para além de ter de gerir a sua relação, vê-se confrontada com uma imposição de maternidade por parte da ginecologista que a analisa ‘’A menina é católica, está no 4º ano, vai acabar o curso e já tem namorado há imenso tempo.’’



Maria dos Anjos já o chama de príncipe nos seus sussurros íntimos, desde a primeira vez que o vê. Edgar já lhe diz que ela não é como as outras, ‘’estudantes’’, ‘’betas’’, ‘’sem coragem’’, ‘’sem nada na cabeça’’. Reza à sepultura de D. Afonso Henriques para que tudo corra bem na sua relação (é a minha cena favorita). Apesar de o apoiar a um ponto inicial no seu sonho de estudar, numa parte mais avançada, comenta-lhe várias vezes que ele tem de se esquecer desse sonho, que o mesmo não é acessível para alguém como ele, que ele não estaria apto para essa vida. Quanto a Zita, enamora-se ao primeiro toque. Edgar jovem salvador, com sensibilidade e disponibilidade diferente do seu marido, médico respeitado em coimbra. Suporta-o proporcionando-lhe várias oportunidades de trabalho e permitindo-lhe manter-se mais dias no refúgio. No seu segundo encontro que assistimos, fala de literatura e solta-lhe um ‘’aprende-se muito na universidade’’, de forma depreciativa por ele não pertencer a esse ‘’mundo’’.



Numa tentativa de ser maior, o protagonista começa a assistir a aulas da Faculdade de Direito sem chamar à atenção. Rouba um código penal a outro colega e, em voz off, escutamos monólogos seus lendo citações sobre as leis em relação a crimes de carácter sexual e de sequestro. O poder de entender os contornos legais das suas perversões justifica a Edgar o porquê de ter legitimidade para cometer-las.



SEMPRE A CHATICE DA PRAXE



Observamos uma clara mudança de carácter aquando Maria dos Anjos, na sua ingenuidade pura, oferece um traje universitário ao protagonista. Ao trajar-se, é notável a segurança e confiança que dele emanam, como se finalmente se sentisse incluído dentro do espaço de Coimbra. O traje empodera-o, dando-lhe legitimidade para iniciar a sua jornada delinquente - mutilando e violentando mulheres, estudantes da Universidade e igualmente trajadas - representativas de duas das suas dores: a perda da possessividade sob Ana Rita e a impossibilidade de chegar a fazer parte do mundo estudantil. Só se sente capaz de fazê-lo de capa e batina no corpo.



Perante o aparecimento do sequestrador, torna-se perceptível uma série de críticas, de forma mais ou menos óbvias, a várias instituições da cidade. Nomeadamente, a Associação Académica de Coimbra, a equipa reitoral da Universidade de Coimbra e as Autoridades Policiais. ''A Universidade não é a inquisição'' conta-nos o reitor, numa reunião com a direcção geral da AAC, depois de surgir em debate uma denúncia a um professor que mantém relações ilícitas com várias estudantes, e se propõe a suspensão do docente em questão. A resposta do reitor é que não perseguirá ninguém e que essas insinuações não se admitem. A passividade absurda desse comentário. O reitor admite mais tarde que entende que o mutilador está a atacar a sua instituição, pelas mensagens que carva nos corpos das sobreviventes. Ainda assim, a apatia do corpo reitoral recusa-se a fechar portas à universidade, mesmo com um criminoso à solta, e tampouco discutem o seu papel no desenrolar da situação ou propõem criar medidas preventivas ou grupos de apoio. Curiosamente, falar de insinuações e reitoria quase me remete a um certo probleminha 2017 e riscos e quadros e pintadas e muito muito barulho e repúblicas no meio do barulho. Essa apatia por parte das instituições é também notável pela comunidade estudantil, que faz piadas com a situação, principalmente os homens.



Não entrarei em divagações sem fim sobre a praxe, se bem que poderia. Há uma única cena de praxe ‘explícita’ no filme, envolvendo uma trupe. É violenta o suficiente. Da mesma forma que escutamos Edgar em voz off a ler partes do código penal relacionados com crimes sexuais e assassinatos contrastados com imagens das suas vítimas sequestradas, essa mesma leitura do código penal em voz off é usada também para acompanhar o momento de humilhação praxístico. O diálogo presente range entre ‘’cabrãozinho, olha pro cabelinho dele, paneleiro, panasca de merda, ninguém te devia ter parido, chora chora chora seu maricas, chupa mas é um mangalhão'' entre outras palavras bué de bonitas. São interrompidos pela RUC, que anuncia o surgimento de uma nova vítima - e é só genial a dicotomia entre a reacção dos estudantes que se encontravam a participar no ritual praxístico e dos estudantes que receberam a notícia desde uma república, (Bota Abaixo).



As repúblicas são, talvez, o tema do texto no qual sinto que consigo pensar com mais cercania. Nesta cena, encontram-se um par de estudantes numa festa digna de cozinha - como todas as melhores são - entre a confusão toda do nosso mundo. Ao escutar a notícia na rádio, as pessoas perplexas quebram obviamente a festividade em que se encontravam e sentam-se a repensar o ciclo inquebrável de violência que se tornava vigente nas suas ruas. Clarificamos que há merdas que nunca mudam mesmo quando, de seguida, somos transportados a um Conselho de Repúblicas (órgão representante de todas), onde no meio de dezenas de ideias desconexas, fofocas mil e comentários insensíveis, uma mulher interrompe as vozes masculinas que ocupavam a sala, mandando-os calar e confrontando-os com que falam muito e fazem pouco. Fa-lo tendo que sobrepor a sua voz, tendo que impor o seu direito de falar. Como comigo e com as minhas colegas também aconteceu sempre, transformando um espaço com o seu potencial revolucionário numa guerra de egos, onde ainda hoje persiste o machismo. Relembro que o filme é de 2001.



Este comentário é particularmente curioso, considerando algumas críticas urgentes a ser feitas ao que vive ainda hoje nas míticas casas comunitárias. Não se omite que institucionalmente, algumas das casas continuam agarradas a regras e imposições arcaicas perante os dias em que vivemos. Muito menos se omite que existem hipocrisias internas dentro destes espaços. Tem-se em consideração que certas gerações de certas casas foram habitadas por pessoas cheias duma dormência constante face aos problemas da comunidade das repúblicas ou de outras lutas necessárias de Coimbra e de Portugal. Ainda assim, continuam a ser dos espaços mais aptos para gerar oportunidades de pensamento crítico, formação cívica e aprendizagem, sendo polos sociais e culturais fundamentais a Coimbra. Resistindo sempre. Esta cena é particularmente impactante pois nos permite reflectir sobre a bilateralidade e agressividade das respostas entre o grupo que se encontrava na praxe e os que estavam na república (mesmo que os últimos sejam, nessa época, também a favor da praxe). Igual impacto tem que, mesmo dentro do espaço que supostamente rompe com a brutalidade dos rituais da praxe, segue existindo a mesma doença patriarcal que não permite, ainda hoje, que tantas mulheres participarem na esfera política como podem, sabem, gostariam e têm direito. Ainda assim, é também no espaço da república que, apesar da desordem que a malta de olheira descaída bem conhece, saem as propostas mais lógicas de possível solução ao violador à solta: turnos de vigilância e buscas pela cidade. Acção directa. Quando uma das vítimas, Lígia, dá entrada no hospital, entram todos os repúblicos com quem vivia e justificam a sua presença com o médico que a acompanha: ‘’Não importa. Somos nós a sua família’’. Isto é mágico também. E ainda somos assim.



Antes de se dar início o rasganço com que o filme começa, passamos pela estátua de D. Dinis acompanhada de um poster gigante que nos conta que ‘’D. Dinis está de luto pela morte do ensino superior em Portugal’’. Ana Rita justifica a necessidade de que a luta contra as propinas seja grupal, de todos para todos - o que gera um debate sobre o estado do movimento estudantil conimbricense e português. Numa manifestação, podemos escutar a presidente da AAC a proclamar a tomada da ‘bastilha’, e que a Universidade aos estudantes pertence.



‘’ - Isto da política… Não percebo… Propinas… Não pagam porquê? São todos uns meninos ricos… Dizem ‘não pagamos, não pagamos…

- Não percebes que a nossa luta é por muito mais do que isso? É para que pessoas como tu possam continuar a estudar.’’



Evidentemente, o filme passa-se no desenrolar da luta contra as propinas de 2000, luta essa que infelizmente continua pertinente nos dias de hoje. Sofre-se o mesmo atentado à educação pública e seguem as desigualdades na oportunidade de estudo. Desde a classificação de Coimbra e da Universidade de Coimbra como património mundial, podemos observar um aumento dos casos de gentrificação em Coimbra, afastando locais dos centros urbanos onde viveram toda a sua vida. O interesse parece focado à criação de mais alojamentos locais, hotéis, merdinhas de T0 onde nem o coração cabe, airbnbs e cada vez há menos comunicações com instituições como, por exemplo, o Sasuc e os estudantes da UC. Se não me engano, foi há cerca de três ou quatro anos que os Sasuc deixaram de conseguir ‘’justificar ao Tribunal de Contas que um aluno que viva numa república aí viva efectivamente, com o objectivo de receber ajuda mensal pelo alojamento (70€) porque não existe registo com valor jurídico de que aí habita efectivamente’’. Tem vindo a ser priorizado, dentro do próprio espaço da universidade, a utilização do espaço para fins turísticos, prejudicando os mesmos estudantes que pagam propinas e… sei lá… querem vidas tranquilas sem quem lhes saque foto à sala de aula e casas de banho sem simbolozinho turista.



COIMBRA MAQUINIZADA



É indispensável questionar a transformação dos espaços que circundam o centro urbano de Coimbra e os entornos da Universidade durante os últimos dez anos quando se aborda o fenómeno de gentrificação e turistificação da mesma. Nunca fui estudante da UC. Como mera espectadora e nunca participante, sempre habitei Coimbra cultivando uma visão indirecta sobre as vivências de quem elegia esta cidade para estudar. Aos colegas e irmãs várias que fui fazendo e foram ficando - de norte a sul, às ilhas, aos continentes vários e aos amores grandes de erasmus - há um certo discurso que se repete na boca de muitos: ‘’És a única pessoa que conheço de Coimbra coimbra, sabes, que tenha vivido mesmo aqui desde sempre, deve ser estranho.’’

Sempre senti Coimbra como uma máquina energética que apresenta a quem chega, uma panóplia diversificada de oportunidades para nutrição própria. Os muito jovens, chegam fora das amarras de supervisão paternal e prontos para se descobrirem e criarem novos hábitos e memórias. Jovens ou não, algo tende a repetir-se: que a chegada a Coimbra aconteça tendo já um prazo de validade, a d curso ou do mestrado ou do doutoramento ou do que seja. A existência de aulas tende a ser um factor forte para a manutenção das pessoas na cidade (o que é curioso de escrever em tempos de covid), fora raras excepções. A grande maioria dos estudantes voltam às suas cidades natal em grandes feriados, férias e interrupções lectivas. Entre o imaginário da própria vivência universitária, as associações, secções culturais, repúblicas, a vida nocturna etc, Coimbra é ainda uma cidade bastante atraente, para portugueses e estrangeiros. É a cidade da velocidade, onde se contrapõem dezenas de planos, onde há em cada esquina um amigo, , há em cada casa uma casa nossa, há os rostos e sítios do costume e há rostos e sítios novos, há muita música na rua e há portas abertas, em vários sentidos… a aventura e a aleatoriedade da vida. Coimbra é mágica, nesse sentido.



Porém, há quem não se queira alimentar dessa máquina. Ou pelo menos, quem não queira limitar a grandiosidade que é Coimbra a isso. Em continuação do comentário que recebo e partilhei anteriormente, existe uma parte dois onde contam que ‘’Coimbra é uma cidade boa para viver um tempo e depois ir embora. Aqui não há nada e não se faz vida de nada’’ Repetem isto tantos e tantas que se me cruzaram. Há que analisar e ter em conta o que leva jovens e adultos, estudantes e não, artistas, empreendedores, etc a pensar que a sua presença na cidade está focada no ócio e não em encontrar-se oportunidades para trabalhar em si próprios e na sua carreira. E aqueles de nós que pretendem fazer vida na cidade de Coimbra e se vêm obrigados a ter de abandona-la por falta de trabalho, oportunidades, público? Será uma responsabilização meramente pessoal ou resultado de anos (até décadas) de apagamento cultural? Será que Coimbra não cai num ciclo repetitivo em que se proíbe a si mesma seguir em frente e abrir portas para novos e diferentes tipos de vivências? Que papel desempenham as pessoas que efectivamente estão aqui instaladas? Em que trabalham? Que perspectivas de futuro têm?



Este tecido de gente passageira pela cidade é igualmente necessária e importante, tendo em consideração a forma como Coimbra funciona hoje em dia. Não me interpretem erradamente: apoiarei eternamente que as cidades são feitas para quem nelas quer habitar e fazer parte, respeitando o que existe previamente, mesmo que criticando de forma informada as estruturas existentes que deixam de fazer sentido. Reconheço também todo o sumo que recolhemos desta passagem contínua das mais inesperadas almas e este ajuntamento de diferentes gentes. Coimbra é mais rico por ter isto. Porém, sente-se ainda no ar um desrespeito aos que optam por ficar aqui e dedicar-se a participar na cidade de forma activa. Eu senti alguns dias que, até certo ponto, o que eu podia fazer na cidade estagnou. Há que pensar em continuidade e no valor que se dá a quem cuida os projectos, os colectivos, as casas, os espaços aos quais queremos voltar. Coimbra não é só válida em regime disneyland parque de diversões e shots no nl.



Entristece que Coimbra tenha vindo a ser engolida por este olhar depreciativo sobre quem expressa vontade de criar raízes aqui. A força bruta da imposição estudantil nos espaços da cidade é um dos temas mais estruturantes do filme. Interpela Maria dos Anjos a Edgar, a certo ponto: ‘’Estes túneis… não sei como gostas disto…’’ ao que responde ‘’É o único lugar desta cidade que não está cheio de estudantes. Tou farto de idiotas’’ Para quem cresceu à beira rio a ver o circo da praxe… Edgar, eu entendo-te. Ter de ser espectadora de forma impositiva a este espectáculo a que chamam praxe, tradição ou o que seja (e eu chamo cocó) é, por si só, um acto de violência.



Há que repensar se existem comunidades pertencentes a Coimbra que são de alguma forma afastadas ou ignoradas de uma esfera opinativa sobre o desenvolvimento da cidade pois não pertencem à ideia dominante do que Coimbra é ou não é. Ideia essa que é de tantas formas classista, edadista e desconectada de muitos outros problemas actuais. Estas pessoas, fora da hegemonia que ocupa a cidade, sem voz e consequentemente prejudicadas, tendem a optar por levar uma vida fantasmagórica no activismo conimbricense. Gostava muito de investigar sobre isto e falar com estas pessoas.



Este filme é importante porque existiu aqui quando nada existe aqui. Quantos projectos nasceram em Coimbra para vir a proliferar de forma bem sucedida noutras partes do país, da europa, do mundo? Quantas pessoas consideram que em Coimbra os seus projectos artísticos não conseguirão ‘’andar para a frente’’? Existe a ideia que, dentro do panorama nacional, trabalhar em Coimbra é ficar sempre um pouco à margem. Em regime de espectador, há quem ainda se queixe da falta de cultura. Que não há música em Coimbra. Que não há cinema em Coimbra. Que não há exposições em Coimbra. Que dizem eles sobre os concertos no Salão Brazil a ⅓ da sua lotação. Que dizem eles da quantidade assombrosa de assentos vazios às segundas no Teatro Gil Vicente. Existe igual urgência em que se financie a continuidade de espaços assim, e que quem pode participar neles e contribuir o faça, sem ser um suplício pedir aos colegas para que se unam a um plano cultural curioso e pertinente.



Conheço Coimbra e o Rasganço é das coisas mais valentes que eu já vi em muito tempo. Eu também já tive o projecto e sonho de documentar esta Coimbra mágica (e os sítios mais mágicos dela) que vejo, e com o desgastar dos anos passei a desconhecer o amor que tinha encontrado nestas (tantas) caras que gravei. Nunca o terminei. Achei que não valia a pena e nunca ia fazer jus à magia das repúblicas, tão rebeldes e utópicas e contraditórias. Mas coimbra precisava que eu fizesse aquilo. Eu precisava que eu própria fizesse aquilo. Ver este filme fez-me ainda acreditar que devo. Porque quem cria habilita-se, quem cria experimenta e expõe-se com a alma toda aberta. Quem desrespeita isso é que não vale nada.



REFLECTIMOS



Há um manifesto da realizadora onde queima a película original do seu filme com vista para a Assembleia da república, com a dura mensagem ''Contra a suspensão dos apoios às artes, contra a paralisação imposta ao cinema português'' e ''A crise é sempre uma desculpa para eliminar artistas e o seu trabalho'' A força que isto tem. De certa forma, entendo que há quem ridicularize o filme pelo seu ritmo, pelos monólogos filosóficos, por não estarem a par do simbolismo que transpõe. Porém, eu sinto a mesma angústia que este filme reflecte sobre a cidade. O amor paradoxal. Como às vezes, Coimbra, dás-me nojo. Vai sempre haver melhorias, e neste filme seguramente podia haver várias. Estar satisfeito é fechar os olhos. Mas a mim fez-me muito muito bem. Obrigada, raquel freire. Iremos sempre repensar Coimbra com esse espírito todo e com essa força toda e sei que outros estarão aí connosco nesta luta.



''Nota de intenções:

Fiz este filme para acreditar no amor.

Para poder ser desmacarada pelo público.

Para que todos os poderes fascistas sejam destruídos.

Para todos os que o vejam chorem e pensem que também eles um dia serão felizes.

Para ter o prazer de o filmar.

Para destabilizar os conservadores com forças ambíguas, impuras e frágeis.

Para vencer todos os meus limites.

Porque vi Deus e o Diabo na terra do sol.

Porque agora a vida vale a pena.'' Raquel Freire

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